Nesse episódio falo com a Mari Guedes, que é profissional de dublagem, além de cantora e musicista! Ela me conta tudo sobre os bastidores e as curiosidades do mundo da dublagem e por que a dublagem brasileira é considerada tão boa. Vem ouvir!

 

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Produção e apresentação: Ananda Garcia
Edição: https://www.instagram.com/jenni_edita/ 
Mais em: http://aeradoaudio.anandagarcia.com/  (em breve transcrição completa de todos os episódios)

 

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Transcrição completa do episódio

 

 

(INÍCIO)

 

[00:00:00] 

[Vinheta de abertura]: A Era do Áudio.

[Abertura]

Ananda: Eu sou a Ananda Garcia e nesse podcast vou conversar e aprender com os profissionais que fazem os sons e os conteúdos que a gente ama ouvir. E se você também é dessa tribo, cola aqui e ative os seus ouvidos, porque você está na Era do Áudio.

[Trilha sonora]

Ananda: Hoje a gente vai falar sobre dublagem. Eu tenho certeza que você lembra dessas vinhetas: “Versão brasileira Herbert Richards”, “Versão brasileira Álamo”, “Versão brasileira Cine Vídeo”. Pois é, no final da década de 30, a dublagem chegou ao Brasil com a estreia da Branca de Neve e os Sete Anões e, de lá para cá, eu tenho certeza que muita coisa mudou no processo de dublagem, sobretudo na rotina dos dubladores, e é sobre isso que a gente vai conversar hoje: como funciona um estúdio de dublagem, como é o dia a dia de uma dubladora. Para tirar as nossas dúvidas, eu recebo aqui a Mari Guedes. A Mari é de Santos, São Paulo, e trabalha com dublagem desde 2017. Além disso, ela é atriz, cantora e musicista. Mari, obrigada por estar aqui, por bater esse papo com a gente hoje.

Mari Guedes: Ah, estou superfeliz. Eu adorei o convite. 

Ananda: Que bom. É, quando eu te encontrei no Instagram, eu pensei: “Nossa, eu quero muito falar sobre esse tema”, um tema que me interessa muito. E queria saber como você entrou no meio da dublagem. Eu imagino que você seja atriz também, por… os dubladores são atores, não é?

Mari Guedes: São, é. É uma das coisas que mais me perguntam: “O que você precisa estudar para você ser dublador?”, e é necessário… a primeira coisa é você ter o DRT. Primeiro, entrar em um curso. Entra no curso, vê se é o que você curte, tira o seu DRT. Tendo o DRT, que é o registro de ator, aí vai atrás de curso de dublagem. Mas, para mim, particularmente, a dublagem foi uma coisa que foi acontecendo, porque eu só sabia que eu queria trabalhar como artista, tanto que eu estudo, sempre estudei, estudo música, estudo vários instrumentos e canto, e isso e aquilo, aí veio o teatro também, aí veio o curso de dublagem e a dublagem foi o que rolou de trabalho. Desde o início, foi onde me abriram portas e foi acontecendo de um jeito maravilhoso. Mas já dei aula de teatro, já dei aula de música, fui trabalhando em um monte de coisa até encontrar e perceber que, nossa, é isso que eu quero para a minha vida.

Ananda: Eu ia te perguntar: tu tocas instrumentos, canta, tu falas idiomas. Como esses conhecimentos multidisciplinares te ajudam no teu trabalho como dubladora hoje?

Mari Guedes: Então, já me perguntaram várias vezes se, para ser dublador, você precisa falar inglês, e eu acho curioso, porque a gente não dubla só coisa em inglês. Quando vem um anime, a gente dubla coisas que vêm em japonês para nós, a gente dubla novelas turcas, às vezes a gente dubla algo que é de outra língua e vem dublado em espanhol para nós. Então saber ou não saber a língua, na verdade, não interfere. É óbvio que, você sabendo, ajuda, porque você tem noção de onde está a frase ali e o texto está aqui, então eu vou saber mais ou menos onde o texto está. Quando você pega um texto longo em uma língua que você não sabe, a chance de se perder é maior. Um longo texto em que o cara está falando japonês: eu tenho que decorar o tempinho que ele fala mesmo, decorar o que eu acabei de escutar para syncar aquilo. Mas não é necessário, embora agregue bastante. Então eu me formei em inglês, me formei em francês – quando eu estou trabalhando com essas línguas, isso me ajuda para caramba -, e a parte musical sem dúvida me ajuda nessa sincronia, em uma memória auditiva que me ajuda demais. Eu escutei e lembro exatamente o que eu acabei de escutar, e isso é extremamente necessário na dublagem, porque senão a gente esquece. Não pode esquecer. A gente assiste a uma cena, eu preciso lembrar onde ele tem pausa, onde ele teve uma reação, como ele falou aquilo, se ele falou rapidamente essa parte. E é isso que faz a gente conseguir dublar, syncar e fazer o que é necessário.

Ananda: Em geral, os atores que fazem dublagem também têm conhecimento musical, conhecimento de outras artes audiovisuais ou não?

Mari Guedes: Acontece muito, mas desse jeito natural, porque normalmente são coisas que interessam a gente. Você gosta de uma área e quer ir estudando, então se é arte, a gente vai estudando arte. Tem dublador que dança, tem dublador que canta, tem dublador que toca, tem dublador que dubla e só dubla. É meio automático, a gente vai querendo descobrir. Eu gosto muito de estudar, sou meio nerdzinha. Eu gosto muito de estar estudando sempre e acho que muitos dos meus amigos são assim também.

Ananda: Fala-se muito que a dublagem do Brasil… eu não sei, no Brasil a gente fala isso. Talvez fora do Brasil não se fale, mas a gente diz que a dublagem do Brasil é uma das melhores do mundo. Você concorda ou você atribui isso a alguma coisa em específico? O que você acha dessa afirmação?

Mari Guedes: É, então, realmente não é só a gente que fala, é um reconhecimento mundial. A dublagem brasileira é considerada a melhor dublagem do mundo. Isso parte tão do começo, isso parte lá da tradução, isso parte da liberdade que a gente tem e da criatividade que a gente tem em alterar um texto, talvez, ou uma gíria. Parte de quem faz o casting, porque é um cuidado feito com muita atenção, é um trabalho feito com muita atenção de pegar vozes que realmente combinem com os personagens e se casem e tal. É todo esse trabalho, é um trabalho muito grande para a gente entregar o produto que a gente entrega, e é tudo feito com muito cuidado, igual eu falei, dos tradutores, a quem faz o elenco, aos dubladores e os técnicos e os diretores. Todo mundo tem muito cuidado com todos os produtos que entrega, e é isso que vai fazendo esse trabalho ser tão especial e tão reconhecido.

Ananda: Nossa, eu tenho muita curiosidade em saber como é o passo a passo do teu trabalho no teu dia a dia, mas a gente já vai chegar lá. Tenho algumas outras perguntas antes. Eu sei que existe alguma questão contratual que nem todos os dubladores nem sempre podem falar no que eles estão trabalhando. Bom, isso faz sentido até para proteger lançamentos e tudo mais, mas, se você puder, eu queria que você contasse um pouco que tipo de dublagens você faz, se você se especializa em um tipo de coisa ou se é uma coisa bem versátil.

Mari Guedes: É muito versátil. Mais para cá eu descobri uma voz de menininho que eu faço e que fica muito legal. Até eu passei a gostar da voz de menininho. Mas não dá para dizer que é uma especialidade, porque cada hora a gente dubla uma coisa. Tem escalas que a gente vai fazer várias pontinhas e, em uma mesma escala, a gente faz um menino, uma criança, uma senhora, uma mulher e um robô. É isso. A gente tem que estar preparado para fazer isso. Isso vale também para os produtos. Imagina: ao mesmo tempo eu estou dublando anime, reality, filme, série, animação, o que for. A gente nem sabe o que vai fazer quando entra em uma escala.

Ananda: Pois é. Quando você fala escala, é o seu horário de trabalho? Não é um filme ou uma peça?

Mari Guedes: Não é.

Ananda: A escala é um horário, é isso?

Mari Guedes: De acordo com o trabalho que eles precisam, nosso, eles dão uma escala: “Olha, você tem três horas para amanhã?”, uma escala de três horas, uma escala de meia horinha, e é isso que a gente chama de escala. É uma coisa que muitas vezes acontece de um dia para o outro, é mensagem: “Amanhã você tem tempo livre? Eu preciso de três horas”. Aí está bom, aí é de acordo com a quantidade de trabalho que a gente vai ter.

Ananda: Acontece às vezes de gravar mais de uma voz para um mesmo programa de TV, um filme, um desenho?

Mari Guedes: Muito. É o que a gente fala que são as pontinhas. Em um mesmo filme, eu posso fazer a enfermeira e o menino que está brincando, jogando bola na rua. E nem se percebe. Não dá para perceber, é muito engraçado isso.

Ananda: Eu assisti a alguns dos teus stories e é muito legal te ver fazendo dublagem, porque tu estás de fato interpretando, o teu rosto está encarnando aquele personagem. Eu achei incrível. E aí a gente entende por que é preciso ter o DRT de ator e tudo, porque de fato é muito intenso. E, Mari, por que vocês não têm acesso ao que vocês vão gravar antes? Nem em produções grandes? Não rola para vocês estudarem o texto, sei lá?

Mari Guedes: Primeiro eu queria falar que fiquei muito feliz com o seu comentário, porque isso que eu passei a postar eu percebi que era uma coisa que nenhum dublador fazia, mas porque não podia também. É o que eu falei, mudou muito com o home studio. A gente não podia entrar no estúdio de celular, então nada do que era feito ali era mostrado ou falado. Então eu tomo muito cuidado pela questão contratual, que você comentou, porque nada do que a gente está fazendo, não foi lançado ainda, nós podemos divulgar nada. Então nenhum dos meus vídeos cita nomes ou fala algo que você fale: “Ah, é tal personagem”. Nenhum. Tanto que muitas das perguntas nos vídeos são: “Quem ela está dublando?”, “Quem ela está fazendo?”, e eu não posso responder até que seja lançado. Não é nem um não poder, é que não é assim. É desse jeito mesmo, a gente recebe a escala. Às vezes a gente até sabe o que vai ser dublado. Se é algum amigo, fala: “Te botei em um filme que chegou aqui para a gente, olha o trailer que legal, você vai fazer tal personagem”. Isso acontece, mas uma coisa de amizade, porque sim. Receber texto antes para ficar estudando, saber o que acontece na história, saber o que o personagem vai passar, se vai chorar, se vai rir, isso não, é tudo na hora. 

Ananda: A galera que é dubladora oficial de algum ator – eu não sei se isso rola, por exemplo, a voz da Sandra Bullock. Geralmente eu vejo que é a mesma pessoa.

Mari Guedes: Sim.

Ananda: Rola de ter um contrato ou isso é meio que uma combinação informal? “Ah, é a Sandra Bullock, vamos chamar a profissional”, que no caso eu não sei o nome, mas “Vamos chamar a pessoa”.

Mari Guedes: Sim, é uma combinação informal, é uma coisa que acontece. A voz dela encaixou já há anos e provavelmente foram indo os produtos para uma mesma casa, que é no Rio, se eu não me engano, e por isso, aí ia chamando sempre a mesma dubladora. São os bonecos, que inclusive têm sido… a gente chama de boneco na dublagem quando você tem um ator que você dubla sempre. E tem acontecido cada vez menos, se for reparar. É difícil hoje em dia chegar um ator novo e pegar um boneco, porque tem cada vez mais casas e cada vez mais elenco, então tem sido mais espalhado, tem tido mais oportunidade de espalhar e cada hora os atores estão com um uma voz. Agora é mais comum isso.

[00:10:18] 

Ananda: Ok. Ah, sim, porque não sei, quando eu cresci, eu lembro que os atores de Hollywood, muitos, eram dublados sempre pela mesma voz. Eu lembro disso, isso é muito marcado.

Mari Guedes: É, o Adam Sandler tem uma voz muito específico, a Sandra Bullock, a Anne Hathaway. São vozes que parece que combinam mais que o original até para a gente aqui.

Ananda: Sim, combina muito com eles. E, Mari, você já dublou coisas para reality show, não é? Eu acho que eu vi no seu Instagram. Para o Ru Paul, não foi? Algumas outras coisas.

Mari Guedes: Ru Paul, 90 Dias Para Casar. O mais recente foi o Ru Paul, e que presente maravilhoso que foi.

Ananda: Que ótimo. Eu queria te perguntar uma coisa não necessariamente desses realities, mas às vezes eu assisto a alguns programas de TV, vou te dar um exemplo: Irmãos à Obra, e a dublagem, quando é para programa de TV, me parece que é muito diferente da dublagem de um filme. Parece que ela é mais descompromissada, é mais solta, não é tão sincronizada. Isso é verdade ou é uma percepção minha? É mais relax ou não?

Mari Guedes: Não. A sincronia tem que estar sempre lá, é um cuidado que a gente toma sempre. Porém, quando a gente dubla reality, a gente está dublando pessoas que estão simplesmente falando sem texto. Eles não têm um texto. Então a gente tem, mas eles não, então eles colocam falas onde não tem, ou eles gaguejam, ou eles ficam pensando para falar, ou falam errado, e para dublar isso do jeito mais natural possível é o que a gente faz, mas é um desafio, porque é isso, a pessoa está pensando, então eles ficam: “E aí… o que aconteceu foi que… eu não sei…”, e é isso que a gente tem que dublar, tem que dublar cada uma dessas nuances e dessas dúvidas. Quando é um filme ou qualquer outro produto, o produto tem um texto. Eles sabem o que eles têm que entregar. Então, por mais emoção que tenha ou reações, ou pausas, tudo tem sentido, é coeso. Então a gente consegue trazer tudo isso. Agora, em um reality, a gente está dublando e realmente uma pessoa está falando e você está dublando-a falando ali. Tem que fazer…

Ananda: Tendo aquele processo de pensamento. É muito espontâneo para dublar essa informalidade, imagino. Ah, interessante, faz total sentido.

Mari Guedes: Exatamente. Reality é uma das coisas mais complicadas que tem de dublar por causa disso.

[Trilha sonora]

[Trecho dublado]

Ananda: Eu queria entrar agora, Mari, um pouco mais no funcionamento da coisa, como que se estrutura. Você falou antes que tem várias casas. Essas casas que você diz são os estúdios de dublagem?

Mari Guedes: São os estúdios de dublagem. Tem vários estúdios de dublagem, então antes ia cada hora a um estúdio, uma escala de uma hora aqui, vai até o outro estúdio, outra escala de outra hora ali. E aí com o home studio, que foi o que a gente falou, isso mudou, porque eu consigo fazer tudo aqui de casa. Então eu tenho uma escala de uma hora em uma dubladora e aqui eu continuo, eu só conecto aqui e estou com a outra dubladora.

Ananda: Maravilha. Então não se tem, geralmente, um contrato fixo com estúdios ou pode ter como pode não ter? Tem algum padrão?

Mari Guedes: Não, não se tem. A única coisa que a gente vê de contrato, por exemplo, se eu fosse ser a voz da Alexa eu também não ia ser a voz do Google, sabe? Então esse tipo de coisa. Mas entre as dubladoras existir essa coisa de “Nossa, eu só trabalho…”, não, não existe isso. Todos os dubladores trabalham para várias dubladoras. Os contratos que a gente assina são totalmente voltado para a confidencialidade e pelo uso da nossa voz, permitir. A gente assina que pode usar para todos os fins e tal e é isso.

Ananda: Esses estúdios de dublagem têm um contrato com as produtoras de filmes, por exemplo? Eu tenho um contrato com a Pixar ou eu tenho um contrato só com o filme X?

Mari Guedes: Então, eu sei que são os chamados clientes e aí eu não sei… como eu falei, com essa expansão e com o número de casas que tem hoje, eu acho que está cada vez mais difícil essa coisa de “Eu só trabalho com tal dublador”. Não tem muito. Tanto que, por exemplo, você citou a Pixar. A Disney fazia todos os filmes no Rio de Janeiro. Recentemente, a Disney tem trazido os filmes meio a meio. Você vê um elenco Disney que é metade Rio e metade São Paulo. Então às vezes um único produto pode ser feito com vozes de lugares diferentes e tal. Então realmente essa questão… não tem um contrato fechado assim para ninguém.

Ananda: Interessante. E a tradução que vocês recebem não é feita por vocês, tem um tradutor no meio do caminho que dá o texto traduzido, é isso?

Mari Guedes: Isso. A gente já tem o texto traduzido na tela, então a gente assiste à cena… ligou: “Oi, gente, tudo bem? Vamos dublar”, colocou lá a cena, coloca no personagem que a gente vai fazer, então vai indo fala por fala, o que vai fazer, tem o texto aqui, o vídeo aqui, passa uma vez o vídeo, estou vendo os dois ao mesmo tempo, gravou.

Ananda: Nos seus fones de ouvido, você escuta a si mesma? Você não escuta o texto original em inglês ou em francês ou em outra língua?

Mari Guedes: Escuto tudo.

Ananda: Como assim?

Mari Guedes: Eu escuto o original, eu me escuto.

Ananda: Mas não ao mesmo tempo?

Mari Guedes: Eu escuto tudo junto, ao mesmo tempo.

Ananda: Conta mais, achei isso muito louco. Como assim?

Mari Guedes: É. Eu não me ouço atrasada, não dá também. É um retorno no mesmo segundo, que nem agora: eu estou falando e estou me ouvindo. Aqui mesmo eu controlo a altura que eu mesma me escuto, mas eu assisto à cena ouvindo o original e dublando em cima, escutando e tudo.

Ananda: Nossa, tem que ter um raciocínio rápido também.

Mari Guedes: Tem que ter muita atenção. Tem que estar 100% concentrado naquilo. Tem vídeo já que eu postei que em algum erro eu estou me ouvindo e é uma personagem que fala muito. Quando eu falo no vídeo: “Ai, não dá, gente, estou me ouvindo”, é porque o talk de lá ficou aberto, o talk do técnico. Então eu me escuto atrasada. Então eu estou escutando o original, estou me escutando aqui e estou me escutando atrasada. Às vezes, quando é um texto rapidinho, vai e aí eu falo depois: “O talk ficou aberto, fecha”, “Ah, caramba, desculpa”. Mas, naquela cena, naquela personagem, inclusive que não foi lançada ainda, ela falava muito rápido, então não tem como, imagina: estou falando, estou me ouvindo, me ouvindo atrasada, a ouvindo falando feito doida. Eu falo: “Não dá, tem que desligar o talk, senão não vai dar”.

Ananda: E você tem um tempo para gravar isso? Agora você está em casa – até quero entender como funciona gravando de casa -, mas no estúdio: “Eu tenho, sei lá, dez minutos para fazer essa gravação”. Você não tem a tarde toda para fazer mil vezes até dar certo, do jeito que você gostaria, ou tem? Como é a questão do tempo?

Mari Guedes: A questão do tempo vem de acordo com a escala, que é aquilo que eles, de acordo com o trabalho, te dão um tempo. Normalmente você gasta menos tempo do que o tempo de escala. É meio confuso o que acontece na dublagem. Os filmes, ou qualquer produto que for, são divididos em anéis. Os anéis são 20 segundos do produto: a cada 20 segundos, um anel. Então, se eu falo um “Oi” aqui e falo um “Tudo bem?” aqui, estou em dois anéis, entende? Mesmo que eu tenha falado só um “Oi” e um “Tudo bem?”, eu estou em dois anéis. A cada 20 anéis que eu estou, que o meu personagem está presente, conta-se uma hora de trabalho, então, se eu tenho 23 anéis, eles vão me escalar para uma hora e meia, mas dificilmente eu vou gastar uma hora e meia. E que nem você comentou de “Ah, errou, faz de novo”: não tem muito espaço para isso na dublagem. Óbvio que a gente erra e tem que regravar, mas é um trabalho que tem que ser feito com muito dinamismo e muita atenção mesmo, porque senão não rola. Acaba não rolando de te chamarem para mais trabalhos e tal, porque falam: “Poxa, erra muito” ou “Tem que ler várias vezes”. E dificilmente a gente assiste mais de uma vez, assiste duas vezes a uma cena que é um pouquinho mais complicada. Essa personagem que falava muito, tinha cena a que eu assistia duas vezes e falava: “Vai ter que passar de novo”, porque ela não parava. Era uma página inteira, ela ficava um minuto falando direto e eu falava: “Bom, passa mais uma, porque senão não vai dar”. E isso a gente vai vendo, está adaptando o texto – sem mudar, porque a gente não tem tempo para ficar mudando: “Aqui eu vou tirar essa palavra”. Então é tudo de cabeça. Olhei aqui, falei: “Bom, não vai caber aquela palavra ali e tal, beleza, vamos gravar” e aí grava já com essa mudança de texto na cabeça.

Ananda: E, por exemplo, esse um minuto é um minuto que você não faz pausa? Você não pode fazer…

Mari Guedes: Pode, pode fazer por partes. É porque tem cenas… se a personagem não para de falar, não tem onde cortar, entendeu? Muitas vezes a gente começou a gravar e tal: errei no meio. Aí fala: “Ah, não, tem uma pausinha aqui. A gente consegue pegar daqui, então pega dali para a frente”. Mas, se é uma coisa contínua, não tem pausa, não tem onde cortar para falar: “Olha, segue daqui, valeu até aqui”. E aí é quando o negócio fica complicado, mas vai, sai.

Ananda: Nossa, é bem mais técnico e mais difícil que eu imaginava. 

Mari Guedes: É, muita gente acha que existe uma preparação e tal. A dublagem é muito técnica. A gente se diverte muito fazendo, mas, enquanto a gente está fazendo, a gente não tem como se divertir, porque tem que estar muito atento fazendo aquilo, então estou assistindo, estou rindo, estou brincando. Vou gravar? Vou gravar. Então eu estou só focada naquilo totalmente.

Ananda: Concentração total. E sobre essas adaptações da tradução, você tem uma margem ali para adaptar? Você pode mudar algumas palavras? Até que ponto você tem uma liberdade para usar um sinônimo, cortar umas preposições?

Mari Guedes: É, então, depende sempre muito do produto. Tem um produto que eu estou dublando agora – que também não posso comentar ainda, mas é muito legal – que eu não posso mudar nada. Tudo que a gente precisa mudar, tipo, não cabe de jeito nenhum o que está escrito na tradução… primeiro que, quando são produtos que não se pode mudar absolutamente nada, as traduções vêm muito bem cuidadinhas, é muito difícil precisar mudar. Então realmente quase não precisa. Mas quando precisa, precisa escrever um relatório: “Precisei tirar o “Você” da frase porque não cabia, mas aí não cabe a mim, é o diretor ou a diretora que faz isso. E outros produtos a gente já assiste e fala: “Posso em vez de falar “Oi, tudo bem?” falar “E aí, como você tá?”. Aí a pessoa fala: “Ah, beleza, esse produto é tranquilo”. Então a gente vai e manda: “E aí, como você tá?”, que é mais natural. Depende do produto.

[00:20:34]   

Ananda: Essa tradução que vocês recebem vem de um tradutor que já traduziu pensando na dublagem ou é uma tradução padrão?

Mari Guedes: Então, eu acho que isso vai de tradutor para tradutor. Eu sei que tem dubladores que são tradutores. Acredito que automaticamente eles vão fazer já pensando na gente, porque eles sabem o trabalho; e tem tradutores que são tradutores, então eles entregam aquilo. Os textos que vêm para a gente, muitas vezes, são modificados. É difícil ser um texto que a gente não mude absolutamente nada. É muito difícil isso acontecer. Ele está traduzido para a gente saber do que se trata, ainda mais quando está falando de uma língua que a gente não entende. Então o que está lá é lei total. Mas quando não, a gente tem que adaptar.

[Trecho dublado]

[Recado]

Ananda: E, Mari, falando do contexto de estúdio externo, não do estúdio de casa, quem são os profissionais que estão ali geralmente acompanhando o processo de dublagem? Você falou ali que tem um diretor, não é? Ele fica junto?

Mari Guedes: O diretor e o técnico, então, quando era nos estúdios; agora é tudo por chamada. Tem a chamada com os dois acontecendo e aí eles estão me transmitindo a tela com a imagem. O técnico grava. O meu som sai do meu computador, mas ele que grava do dele com a plataforma, e o diretor está ali acompanhando: “Olha, vamos mudar aqui, botar uma intenção maior ali”, ou às vezes é um produto mais tranquilo, então nem tem tantas coisas para corrigir e tal. E quando era no estúdio presencial, é um aquário. A gente entra no aquário da dublagem, um aquário de gravação, e eles estão na outra salinha com as telas e tudo e a gente estava… é assim mesmo, um TV, um balcãozinho, e aí, dependendo, a dubladora… às vezes era texto até em papel ou então o texto na tela mesmo como é agora. E é isso, são esses três profissionais ali trabalhando ao mesmo tempo.

Ananda: Que interessante. Eu ia mesmo te perguntar como funciona em casa. Eu achava que você gravava e mandava o arquivo, mas não, você está ao vivo com pessoas ali.

Mari Guedes: Isso, a gente conecta e é isso: eu assisto à cena, tudo transmitido do computador deles para mim e o que eles gravam meu é transmitido do meu para eles.

Ananda: Pelo que você sente do setor, as casas, as dubladoras vão continuar nesse sistema remoto?

Mari Guedes: Olha, teve uma reunião do sindicato – porque tem um sindicato dos dubladores – e eles colocaram o remoto como algo fixo, porque veio por causa da pandemia, e aí de repente um monte de regra que não podia ser quebrada de jeito nenhum teve que ser quebrada: tudo passou a ser transmitido de um computador em casa para um computador da dubladora, e antes não podia nada sair dali, daquele quadrado. Então precisou se adaptar. E para mim, por exemplo, e para muitos dubladores, isso ajudou demais, porque toda vez que eu ia dublar eu precisava ir até São Paulo, até Campinas. Eram duas horas e meia para ir, duas horas e meia para voltar. A gente está trabalhando muito mais do que trabalhava antes, porque eu consigo pegar escala em várias dubladoras no mesmo dia, coisa que não tinha como. Só o tempo de se transportar de uma casa para a outra já não tinha como, tinha um limite. Então ajudou muito gente. Está todo mundo trabalhando melhor, mais confortável, trabalhando mais, e aí deram esse aval de que o remoto seria para ficar. Teve muito estúdio que teve que ser feito de um jeito muito rápido, então poderia ser melhorado. O meu mesmo: até hoje eu pego coisas, pego dicas, comprei um cooler para o notebook para ele não soltar a ventoinha, porque às vezes fazia barulho e aí muito chato, precisava ficar indo para trás, dublando ali, lá do cantinho, para não pegar. Então a gente está ainda se adaptando e melhorando o máximo possível para poder continuar dessa maneira.

Ananda: Então boa parte dos seus amigos dubladores tem um home studio assim e está nessa.

Mari Guedes: Um home studio – o armário dos dubladores virou o estúdio. No meu caso, é embaixo da escada, igual o Harry Potter. Mas a maioria fez dentro do armário mesmo.

Ananda: Que ótimo. Sim, pois é, dentro do armário, closet, esse tipo de espaço estofado é sempre bom.

Mari Guedes: É, aqui a gente teve que adaptar tudo. Isso aqui era um quartinho cheio de tralha, e aí aconteceu aquilo, eu estava desesperada de não trabalhar, primeiro porque eu amo e segundo porque eu estava sem trabalhar. E aí eu falei aqui em casa – eu moro com os meus pais -: “Gente, pelo amor de deus, estão fazendo home studio, a gente precisa fazer. Tem aquele espaço e tal…” e aí a gente botou a mão na massa, todo mundo, eu, minha família incrível, e foram maravilhosos, que a gente foi atrás de tudo. Fomos comprar espuma, mandamos fazer uma porta de uma grossura assim para não sair som, não vazar som, e aí foi acontecendo. Peguei dicas com amigos meus, a Carla – muito minha amiga – Gmurczyk me ajudou para caramba com qual microfone comprar e foi acontecendo.

Ananda: Mari, o que você indica hoje para quem quer ser dublador? Claro, tem que fazer um curso de ator, eu imagino, mas qual é o melhor caminho tanto para se formar e também para conseguir os jobs?

Mari Guedes: Então, para ser dublador não dá para ter pressa, porque você começa muito lá de baixo. As pessoas precisam saber quem é você, se você é responsável, se você vai chegar no horário, se você trabalha bem. Então mesmo que você esteja formado e vá atrás das dubladoras, não acontece de você chegar pegando um personagem principal. Isso não acontece. A gente entra pegando vozerio, que é aquele grupo de pessoas em um estádio de futebol. São quatro dubladores – antes, eram quatro dubladores dentro de uma cabine falando junto e gritando juntos e era isso. Então era uma horinha de escala ou pega uma pontinha aqui, outra pontinha ali. Então por meses é assim até que as casas comecem a lembrar de você, até que você comece a mostrar o seu trabalho, e aí você vai ganhando desenvoltura também, porque ninguém sai do curso de dublagem um dublador. A gente sai só formado. Não tem comparação ao que eu fazia quando eu terminei de me formar e o que eu consigo fazer agora. É muito diferente, a gente vai pegando jeitos e técnicas, a gente vai pegando dicas. Vai mudando completamente, é a experiência mesmo. Então tem que ter essa noção. Tem que ficar calmo também, porque quando se fica nervoso, a gente não pega dicas do diretor. Isso eu ouvi muito dos diretores de que eu conseguia escutar as dicas e executá-las. Eles falavam: “Gente, tanto novato chega aí. Escuta. E aí a gente fala: ‘Ah, faz com um pouquinho mais de tristeza’ e repete a mesma coisa, porque fica nervoso, fica com medo”. Então tenha calma, vá com calma, mostre o seu trabalho, vá aos poucos, vá sendo lembrado e vá tentando, porque acontece. Só precisa de paciência, de estudo e de experiência.

Ananda: O que você acha que seria o plano de carreira, o caminho, o crescimento de uma carreira de um dublador? Ele eventualmente se torna um diretor de dublagem ou não necessariamente? Ou ele se torna um profissional que geralmente vai pegar os papéis principais? Tem uma escadinha que você enxerga na carreira de um dublador?

Mari Guedes: Olha, a escadinha, igual eu falei, acontece mais ou menos dessa forma que eu disse: você tentando e sendo lembrado. Mas mesmo quando você está em um momento em que você pega personagens principais, você continua fazendo vozerio; você continua fazendo enfermeiros e qualquer personagem pequenininho; você continua fazendo o menino dois, que é o menino da bola, que nem eu falei. Continua. Então eu estou com trabalhos em que eu sou a principal e eu estou com trabalhos que eu faço meia horinha de escala, e é trabalho igual. Então essa escadinha acontece com o tempo mesmo, igual eu falei. Normalmente é a partir de sete anos dublando que se abrem as portas de você começar a dirigir. Isso é uma coisa combinada entre os próprios dubladores, no sindicato dos dubladores mesmo. Então aí é uma porta nova que se abre. Sete anos depois você abre essa porta, então precisa de tempo. E é isso, não é uma coisa… quando você chega lá aonde você quer chegar, você continua fazendo os trabalhos pequenos. Eles são tão importantes quanto. O que vale é você estar sendo lembrado e estar trabalhando. Então se eu estou nessa casa agora com um principal, eu estou com personagens menores nessa. Pode inverter isso em algum momento. Porque também não tem como deixar sempre as mesmas vozes como os principais. É assim que acontece de dar chance para as outras pessoas também. Quem já está lá em cima também faz os menores.

Ananda: Sim, claro, com certeza. Mari, falando um pouco sobre você como profissional… eu estou te ouvindo falar e parece que eu estou ouvindo uma dublagem.

Mari Guedes: Obrigada.

Ananda: Porque a sua voz é muito voz de dubladora e é muito engraçado, porque parece que eu estou conversando com um filme. É ótimo.

Mari Guedes: Muito bom.

Ananda: Não, mas, sério, é incrível, porque a sua voz parece que é toda afinada. Bom, você também canta, não é?

Mari Guedes: Canto.

Ananda: E eu queria saber se você tem um feedback dos seus amigos que não são dubladores sobre a sua maneira de falar. Não sei.

Mari Guedes: Eu acho que os meus amigos… às vezes eu falo zoando com eles do jeito dublagem mais estereótipo, que seria: [Às vezes eu falo desse jeito, mas é só de sacanagem, eu faço brincando] (dublagem), e eles dão muita risada. Então quando é assim, eles riem; agora, com a minha voz normal eles estão super acostumados, só que muita gente fala nos stories – eu dou bom dia e tudo super animada, normal, é realmente o meu jeito de falar – e tem várias pessoas que mandam: “Parece que você está sendo dublada, como é que pode?”. Quando é voz de menininho principalmente, porque eu faço [essa voz assim. Sempre falam: “Caramba, não parece você falando”] (dublagem). Isso sou eu falando. Aí está bom.

[00:30:06]

Ananda: É muito bom. Muito bom, você já entregou. Eu ia mesmo pedir para você fazer algumas vozes para a gente. Tem alguma outra que você acha engraçada e que você acha bacana?

Mari Guedes: Eu gosto de dublar os meus cachorros, que é uma voz super simples, mas o meu cachorro… [eu falo ele desse jeito, ele faz assim, ele fala dessa forma, e as pessoas adoram], [e tem a outra, que é a Estelinha, também. Ela conversa com ele, eles fazem trocas de palavras] (dublagem). É isso, eu brinco com a minha voz no dia a dia.

Ananda: Muito bom, muito fofos. Em algum momento você já teve algum problema de cordas vocais, alguma coisa assim? Existe uma preocupação para os dubladores da questão da saúde da voz ou não é muito falado?

Mari Guedes: É, a gente cuida. Já aconteceu de eu ter escalas grandes e estava com a voz meio rouca ou depois de uma gripe que a gente está meio daquele jeito, assim. E tem escalas grandes que eu faço, aí entre o momento que o técnico está syncando tudo eu ligo o meu inaladorzinho e fico com ele aqui. Beber muita água. Mas isso é coisa que a gente faz no dia a dia mesmo. Eu acho que eu deveria até fazer mais isso da inalação. Eu só apelo para a inalação quando eu não estou bem mesmo. Mas beber água, um própolis, uma coisinha assim: olha, eu tenho que garantir, eu não posso ir para um parque de diversões e berrar feito doida. Então se eu vou ao parque, eu vou ao parque contida.

Ananda: Vai a um show, antes da pandemia, tem que ir…

Mari Guedes: É, então, é contido. E as aulas de canto são tudo também, porque a aula de canto é uma musculação para as minhas cordas vocais. Ela é isso, então o que eu não aguentava antes de grito ou de trabalho mesmo, hoje eu aguento para caramba por causa desse trabalho, e é um trabalho maravilhoso. É a Mari Bannwart que me dá aula, ela é daqui de Santos, ela é incrível, e ela me dá aula mais voltada para isso mesmo, para me fortalecer as cordas vocais, porque o canto é uma coisa que eu faço e que eu amo, mas eu sou dubladora mais do que cantora, e ela sabe. E, meu deus, ela me ajuda tanto, já fui tantas vezes à aula falando: “Mari, eu não vou cantar, eu tenho que trabalhar e eu estou sem voz, me ajuda”, e ela fazia exercícios comigo e fazia uma inalação lá e já me ajudou muito às vezes.

Ananda: Quando você faz a dublagem, de onde você tira o ar? Você utiliza recursos do canto, recursos de respiração do canto para dublar, ou é como se você estivesse falando normalmente com um amigo no seu dia a dia? Como é a respiração?

Mari Guedes: Não, é uma chavinha que vira. Eu não sei nem explicar, mas a gente aprende tanto no canto como qualquer outra… até no teatro a gente aprende essa questão, a respirar sempre pelo diafragma. A gente nunca respira por aqui.

Ananda: É isso que eu ia perguntar.

Mari Guedes: Nunca, sempre diafragma.

Ananda: Não é aqui do peito, é de baixo, é diafragma, não é?

Mari Guedes: É de baixo, é a barriga. Cabe mais ar e é uma coisa que acontece naturalmente. Eu comecei a aprender com o canto, porque eu faço desde os 15 anos, então foi lá que eu aprendi, e agora é tão assim que eu respiro no dia a dia dessa forma. É automático, eu realmente passei a respirar desse jeito. Mas a impostar a voz… quando a gente está dublando… até aqui, eu estou em uma entrevista, não estou falando em um bar com os meus amigos, então é automática essa mudança de postura e de forma de falar e tudo, ainda mais quando o personagem exige essa mudança, então literalmente a gente muda completamente o jeito de falar, o timbre, a voz em si, tudo. A gente muda para fazer aquilo, depois dá risada, depois conversa. Diversas vezes eu estou [não sei o que] (dublagem)… “Ai, gente, errei, desculpa, vamos de novo?”. É uma mudança que acontece assim, quebra.

Ananda: Bipolar.

Mari Guedes: É uma bipolaridade.

Ananda: Se você faz um personagem que está chorando, você acaba chorando também como…

Mari Guedes: Não. Acho que uma vez aconteceu, mas eu não chorei dublando, eu chorei assistindo: “Eu estou chorando, eu estou realmente chorando, espera aí”, mas acho que nem rola, se a gente for dublar chorando, porque é muita coisa que a gente tem que fazer. Igual eu falei, a dublagem é muito técnica, então não dá. Se é um teatro, a gente chora. Eu já chorei muito apresentando peça, chorei, chorava. Mas na dublagem não é assim. [O choro acontece desse jeito… e aí parece que a gente está chorando] (dublagem), mas não, a gente está super de boa. É bem legal. É muito técnico.

Ananda: É muito técnico, exatamente, essa descrição é perfeita. Interessante. Você tem alguma memória com a dublagem de quando você era criança ou algum dublador que você é fã?

Mari Guedes: Eu acho que a minha primeira coisa de dublagem, mas que eu nem via como dublagem, tipo, um trabalho, mas que me marca e eu sei de cor é Toy Story. Eu sou completamente louca. Toy Story aconteceu no ano que eu nasci, é de 95 – eu sou de 95 -, então eu passei a minha infância inteira assistindo a esse filme, e eu assisto até hoje. E eu literalmente sei de cor da primeira à última fala do filme, eu sei de cor. E, meu deus, é perfeito. Não tem falhas, é maravilhoso. Então acho que, quando me falam em dublagem, a primeira coisa que eu penso é isso, é Toy Story. Gente, como é que pode fazer uma coisa, pegar uma coisa em outra língua e transformar e transformar em algo tão Brasil, tão nosso, tão maravilhoso? 

Ananda: Eu acho muito bom, eu adoro assistir animações dubladas. Para mim é muito estranho assistir animações na língua original, geralmente em inglês. Não desce.

Mari Guedes: Sim, eu concordo.

Ananda: E é muito louco, falando de novo da nossa memória afetiva com dublagem. A gente cresceu com muita dublagem, aí depois – pelo menos eu sou de 89, acho que sou de uma geração antes – chegou a um ponto em que não, dublagem… tem que ver legendado, tem que ver na língua original. E eu acho que rolou uma fase em que as pessoas tinham um pouco de preconceito com a dublagem, mas a dublagem do Brasil é incrível. O trabalho que a gente faz na dublagem brasileira é maravilhoso. Você já ouviu feedbacks desse tipo: “Eu não gosto de dublagem”?

Mari Guedes: Eu era uma pessoa assim, eu era uma pessoa que não via coisas dubladas, não assistia, por causa dessa coisa estereotipada, aquela dublagem que eu fiz zoando, falando [dessa forma, e ninguém fala desse jeito] (dublagem). Só que isso não acontece mais. No começo, dublagem era gravada em fita, então você errou? Tinha que fazer tudo de novo. Não tinha como editar, então era a cena e fazia a cena inteira. Então foi facilitando e hoje a gente consegue entregar um produto tão diferente e cada vez melhor até com os mesmos profissionais, porque dublador morre dublador. A gente não para de dublar, a gente só muda os personagens e as características. Mas a gente consegue entregar um produto cada vez melhor. Então essa imagem que se tinha não existe mais. Toda dublagem é feita com muito cuidado e é isso, é cada vez melhor, cada vez mais experiência, cada vez tentando mudar e fazer disso uma coisa mais natural, para o pessoal assistir e falar: “É muito Brasil”, “Parece que foi feito aqui”. Assistir e ver não só syncar e voz, mas ver uma linguagem que é nossa, como a gente falaria realmente.

Ananda: Sim, eu, quando vejo algo dublado, reparo muito nas interjeições, nos pequenos trejeitos de fala e eu falo: “Nossa, isso é muito bem-feito”.

Mari Guedes: É um cuidado mesmo. É isso, é tudo feito com muito cuidado, muito carinho sempre.

[Trilha sonora]

[Dublagem]

Ananda: E, Mari, para a gente ir para os finalmentes aqui, tem alguma curiosidade ou alguma coisa de bastidores, alguma coisa curiosa sobre o mundo da dublagem que você possa compartilhar com a gente?

Mari Guedes: A dublagem é muito curiosa, que nem essa questão, a voz de menininho, por exemplo, é uma coisa que muita gente não sabe: 90% é feito por mulheres. A maioria das dublagens de menino é feita por mulheres. Uma questão de burocracia também e tal. Eu passei em um teste inclusive que depois eu descobri que no teste era eu, um menino de 15 anos e um menino de dez. Passei no teste. Eu achei muito curioso. Mas, falando de curiosidade e com o que a gente citou antes, do Ru Paul, que foi um trabalho recente e maravilhoso, quem ficou por trás desse trabalho foi o Danilo Diniz, que é lá da Marmac – esse trabalho foi feito na Marmac. É uma casa de pessoas maravilhosas, mas o que ele fez foi fora do normal. Ele pegou o Ru Paul para ele e ele fez um elenco: não só um elenco, todo mundo envolvido no projeto da dublagem era LGBTQIA+, desde os tradutores até os dubladores. Então as queens foram dubladas por drag queens, ele foi atrás de drag queens para dublá-las realmente. Todo mundo que está envolvido é, tanto que aconteceu essa conversa. Ele estava em uma escala comigo e falou: “Mari, posso te fazer uma pergunta meio pessoal?”, eu falei: “Pode”, ele falou: “Você é LGBT?”, eu falei: “Sou, sou bastante”. Aí ele: “Não, então tá…”, aí ele me falou e depois teve até um evento que ele fez na casa dele quando lançou no History Channel para a gente assistir todo mundo junto, porque deu um trabalho do caramba para ele fazer um elenco inteiro assim. Não é uma coisa fácil.

Ananda: E é essa temporada mais recente agora?

Mari Guedes: Isso, é o Ru Paul Reino Unido, lançou agora no Star. Foi um trabalho feito com tanto carinho. Então é muito legal poder citá-lo aqui, porque foi muito incrível o que ele fez.

Ananda: Isso já tinha sido feito antes no Brasil, que você tenha conhecimento, ou foi uma coisa inovadora?

Mari Guedes: Não, foi totalmente inovador e foi meio loucura no começo. Eu fiquei sabendo lá no dia, porque o meu papel é muito pequeno, eu faço a jurada, que é a Maisy, ela é jurada por um dia e tal. Então muito legal, porque sou muito fã dela, fiquei superfeliz. Eu sou muito fã de Ru Paul também, assisto realmente, assisto a tudo. Mas lá no dia eles estavam falando tantos perrengues que aconteceram para isso acontecer e em nenhum momento ele desistiu nem deu para trás. Ele foi e falou: “Não, mas eu quero, vai acontecer” e aconteceu, e aí eles conseguiram entregar um produto muito legal. Está cheio de gírias LGBTs, está muito engraçado de assistir, está muito legal mesmo.

[Dublagem]

[00:40:18] 

Ananda: Que bacana, deve estar bem… eu não sei qual é a palavra, orgânico, nativo ou fidedigno.

Mari Guedes: É, isso, exatamente.

Ananda: Que show. Eu adorei essa conversa, Mari, gostei muito.

Mari Guedes: Eu adorei também, muito legal.

Ananda: Gostei muito, eu tinha muita curiosidade, e eu acho que vão rolar mais programas sobre dublagem no futuro, eu acho que é um assunto bem bacana. Até uma outra coisa bacana de comentar: eu acho que a minha geração, a galera que está agora… eu acho que a dublagem reviveu. Tem muita gente que é fã de dublador. Tem muito dublador que dá entrevista por aí, que se tornou personalidade. Eu não sei se é o Guilherme Briggs, do Buzz.

Mari Guedes: Guilherme Briggs, Wendel Bezerra, Charles Emmanuel, são todos incríveis. É porque muito dublador não gosta de ter rosto. Dublador normalmente não tem rosto, é só a nossa voz, então por isso que eu falei até quando eu comecei a lançar os vídeos eu percebi que nenhum dublador fazia vídeos assim, nem esses dubladores que as pessoas conhecem não postam vídeos trabalhando. E aí as pessoas começaram a ver e falaram: “Caramba, é assim, que legal”, assistir por trás, como são… que nem você falou, os trejeitos, as caras e bocas e isso. A gente não só fala, a gente tem que se mexer também, porque senão não sai.

Ananda: Claro. Muito bom, muito legal. Mari, obrigada. Conte-me como as pessoas te encontram nas redes sociais, se elas quiserem assistir aos teus vídeos dublando.

Mari Guedes: Rede social que eu mais uso é o Instagram, agora recentemente eu fiz o Tik Tok também, e é a mesma coisa nos dois: mariguedesdub, de dubladora. É superfácil de encontrar. E eu sempre posto lá, posto meus trabalhos, posto um pouquinho por trás das câmeras, faço minhas palhaçadinhas. Então tem um conteúdo legal. Para quem curte dublagem, acho que vai gostar de ir lá conferir. Eu fiquei muito feliz com o seu convite, de verdade. Entre tantos profissionais tão incríveis, ter sido chamada para ter essa conversa e tal… eu fiquei muito feliz, foi uma honra gigantesca.

Ananda: Que bacana, Mari. Gostei muito também. Acho que você ensinou muita coisa que muita gente não faz ideia. Eu achei fantástica a conversa. Obrigada e até a próxima.

Mari Guedes: Valeu, até a próxima. Um beijão.

Ananda: Obrigada, beijo.

[Trilha sonora]

[Encerramento]

[00:43:02] 

(FIM)

 

 

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